quinta-feira

Contos de Luis Fernando Verissimo: "Lixo" e "Paixões"

Luis Fernando Verissimo - o mestre dos mestres na arte dos contos: um realista hiper-realista, neorealista. O Macro presta-lhe justo tributo.
Lixo Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.
- Bom dia...
- Bom dia.
- A senhora é do 610.
- E o senhor do 612
- É.
- Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...
- Pois é...
- Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...
- O meu quê?
- O seu lixo.
- Ah...
- Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...
- Na verdade sou só eu.
- Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata.
- É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...
- Entendo.
- A senhora também...
- Me chame de você.
- Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim...
- É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como moro sozinha, às vezes sobra...
- A senhora... Você não tem família?
- Tenho, mas não aqui.
- No Espírito Santo.
- Como é que você sabe?
- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
- É. Mamãe escreve todas as semanas.
- Ela é professora?
- Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?
- Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.
- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
- Pois é...
- No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.
- É.
- Más notícias?
- Meu pai. Morreu.
- Sinto muito.
- Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.
- Foi por isso que você recomeçou a fumar?
- Como é que você sabe?
- De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.
- É verdade. Mas consegui parar outra vez.
- Eu, graças a Deus, nunca fumei.
- Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...
- Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.
- Você brigou com o namorado, certo?
- Isso você também descobriu no lixo?
- Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.
- É, chorei bastante, mas já passou.
- Mas hoje ainda tem uns lencinhos...
- É que eu estou com um pouco de coriza.
- Ah.
- Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.
- É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.
- Namorada?
- Não.
- Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.
- Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
- Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.
- Você já está analisando o meu lixo!
- Não posso negar que o seu lixo me interessou.
- Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.
- Não! Você viu meus poemas?
- Vi e gostei muito.
- Mas são muito ruins!
- Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.
- Se eu soubesse que você ia ler...
- Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?
- Acho que não. Lixo é domínio público.
- Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?
- Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...
- Ontem, no seu lixo...
- O quê?
- Me enganei, ou eram cascas de camarão?
- Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.
- Eu adoro camarão.
- Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...
- Jantar juntos?
- É.
- Não quero dar trabalho.
- Trabalho nenhum.
- Vai sujar a sua cozinha?
- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.
- No seu lixo ou no meu?
in Comédias da Vida Privada...
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PAIXÕES, in Comédias...
Quem entende como as pessoas se apaixonam? Pode acontecer de uma hora para outra. Você conhece uma pessoa a vida inteira e um dia nota alguma coisa, um detalhe que nunca tinha percebido antes, e pimba: amor à milésima vista.
O Valter e a Nancy, por exemplo. Amigos desde o tempo de escola, o Valter conta que aconteceu num dia em que os dois vinham pela rua com uma turma, a Nancy um pouco na frente, e de repente ela levantou o cabelo por trás com as duas mãos e segurou no topo da cabeça, mas sobraram alguns fios. Aqueles fios finos e curtos que cobrem a nuca, o Valter diz que foram os cabelos da nuca.
Ele foi tomado de um tamanho sentimento de carinho por aqueles fios na nuca da Nancy que chegou a parar, diz ele que para não chorar. Depois correu atrás dela e beijou a nunca, e no dia seguinte estavam namorando firme, para surpresa de amigos e familiares.
Já a Nancy diz que não se apaixonou na hora, só dias mais tarde. E só quando o Valter não está perto conta como aconteceu. Se apaixonou numa festa a que foi com o Valter e na qual, quando gritaram "Todo mundo nu!", o Valter tirou um saco de plástico, dobrado, do bolso. Tinha trazido um saco plástico para guardar a sua roupa e a dela e evitar que se misturassem com as dos outros. Aquilo a enterneceu. "Foi o saco de plástico", conta a nancy.
Como o amor acaba é outro mistério. A Joyce e o Paquette, por exemplo. Namoraram anos, noivaram, casaram e tudo acabou numa noite. Acabou numa frase. Os dois estavam numa discoteca, sentados lado a lado, vendo os mais jovens se contorcendo na pista de dança, e o Paquette gritou:
- Viu a música que está tocando?
a Joyce:
- O quê?!
- A música. Estão tocando a nossa música. Lembra?
- Hein?
- Estão tocando a nossa música!
- O quê?
- A música. Do nosso noivado. Lembra?
- Eu não consigo ouvir nada com essa porcaria de música!
- Esquece.

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Obs: Luis Fernando Verissimo é assim, é capaz de desmontar a situação mais complexa e servi-la como se fosse um café, de forma simples e quente - mas com todo o seu esplendor. Verissimo é, certamente, um dos grandes contistas do nosso tempo, todos os seus contos revelam mundo, drama, alguns são trágicos mas todos têm algo para nos dizer e ensinar, de uma forma directa ou indirecta. Ler Veríssimo é dormir connosco, é olhar para o nosso umbigo, é fazer a nossa própria endoscopia, e, às vezes, é péssima a imagem que reflectimos.
Mas, ao mesmo tempo, permite-nos sair de nós - mais que não seja para vermos melhor a figura tola que fazemos em certas circunstâncias. Luis F. Verissimo é, portanto, um génio que fala e escreve em português - mas poderia ser um escritor de nomeada em qualquer parte do mundo.
Pelo muito que já aprendi com ele, pelo prazer que já me deu, gostaria aqui de lhe dizer isso e sublinhar a sua qualidade narrativa, a densidade psicológica dos personagens da vida real que escolhe para ilustrar as suas observações, bem como a forma como "saca" os retratos relacionais do nosso tempo.
Uma pérola em movimento - chamada Luis Fernando Verissimo.
Numa palavra: Verissimo serve-nos a Comédia Privada do nosso tempo. Um pouco como se o escritor fosse para a cama connosco: para o melhor e para o pior.
Com ele a história acaba por ser sempre a três...